Quais os processos possíveis para a recuperação energética dos resíduos hospitalares? E quais as vantagens dessa solução para o cenário atual da covid-19?
Yuri Schmitke – O tratamento térmico dos Resíduos Sólidos de Saúde (RSS) utiliza-se do calor para a sua esterilização/destruição. Exceto a autoclave e os micro-ondas, que são tratamentos parciais que não destroem os RSS.
Walfrido Ataíde – As rotas termoquímicas utilizam-se de quatro tecnologias: (i) a combustão/incineração, (ii) a pirólise, (iii) a gaseificação e (iv) a gaseificação a plasma. Tanto a autoclavagem quanto os micro-ondas não permitem o aproveitamento energético no próprio processo, enquanto as outras modalidades termoquímicas pode permitir a recuperação energética, tanto do calor produzido na incineração, quanto de gases e combustíveis líquidos e sólidos resultantes do processo de pirólise e gaseificação, para a geração de vapor ou aplicação como combustível para geração de eletricidade. O tratamento térmico de resíduos encontra-se inclusive nas recomendações do Organização Mundial da Saúde (OMS).
Yuri Schmitike – A incineração tem sido a tecnologia mais utilizada para a recuperação energética. Para usinas menores é possível somente o aproveitamento de calor, que pode ser utilizado para aquecimento ou resfriamento de ambientes prediais, mas as unidades no Brasil não fazem isso.
No entanto, muitas usinas de incineração de grande porte, conhecidas como waste-to-energy (WTE) mass burning, que em regra tratam Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) acima de 600 toneladas por dia, possuem sistema de armazenagem e alimentação independente para incinerar Resíduos dos Serviços de Saúde (RSS), permitindo que a combustão seja feita de forma segura junto com os RSU, resultando em geração de eletricidade, aproveitamento de calor e reciclagem de até 24% dos materiais pós processo de incineração, sendo de 10 a 14% de metais ferrosos e não ferroso e 9% de cinzas petrificadas são reutilizadas na construção civil e em rodovias. Apenas de 1 a 3% das cinzas em volume não são reaproveitadas, devendo passar por processo de tratamento e ser destinadas em aterro classe 1, mas sem risco algum de contaminação. Tais usinas são classificadas como limpas e suas emissões irrelevantes, sendo indicadas pelo IPCC/ONU como a forma mais eficaz de mitigação das emissões dos gases de efeito estufa (2011, Cap. 10).
As usinas WTE mass burning são a rota tecnológica mais utilizada de recuperação energética de resíduos sólidos, em acima de 90% das ocasiões. A União Europeia possui 522 unidades, tratando 28% de seus resíduos em tais unidades. O Japão destina 70%, a China 40% e os Estados Unidos 13%. Ao todo, existem aproximadamente 2.430 unidades de usinas de tratamento térmico de resíduos, sendo mais de 1.200 do tipo mass burning, geralmente utilizando-se de grelhas móveis. Tais tecnologias reduzem os gases de efeito estufa em 8x, eliminam o risco de contaminação do solo e dos recursos hídricos (água potável disponível) e o gasto com a saúde pública. Vale dizer, o Brasil destina 40% dos seus resíduos para lixões e gasta R$ 1,5 bilhões por ano no tratamento de pessoas que tiveram contato inadequado com o lixo.
O que engloba o processo de gaseificação ou pirólise?
Walfrido Ataíde – As tecnologias pirolíticas são processos termoquímicos com grande potencial de transformação dos resíduos em combustíveis e matéria-prima, que podem ser destinadas a várias outras cadeias produtivas.
A pirólise (em breve descrição) consiste no aquecimento dos resíduos em temperaturas que variam entre 400 a 1.100 ºC (dependendo do tipo de reator utilizado), em ambiente sem oxigênio. Os reatores pirolíticos têm duas câmaras separadas e não comunicantes, sendo uma destinada à produção de calor, e a outra que recebe o material a ser tratado, onde não é admitido o oxigênio. Nestas condições, o material não oxida, portanto não produz chama, e é decomposto formando novas substâncias: o carvão (coque ou biochar), o óleo pirolítico e outros gases, sendo que tais produtos possuem alto poder calorífico, equivalentes aos óleos combustíveis derivados de petróleo e do gás natural. Existem também processos modernos de pirólise que geram energia elétrica em grandes quantidades.
A gaseificação, que é uma das fases do processo pirolítico, constitui-se na degradação térmica dos resíduos na presença de um agente químico, usualmente o oxigênio puro, o ar do ambiente ou vapor d’água. Mas diferente da combustão (incineração), a gaseificação trabalha com quantidades menores de oxigênio. A temperatura da gaseificação situa-se na mesma faixa da pirólise, dependendo da tecnologia de reator empregada. O principal produto gerado é o gás de síntese (syngas), composto em grande parte por monóxido de carbono (CO) e hidrogênio (H2). Esses gases podem ser convertidos em diferentes produtos químicos, além terem uso imediato como combustível limpos para a produção de eletricidade.
Quais são os pré-tratamentos adequados para a gaseificação ou pirólise dos resíduos hospitalares?
Walfrido Ataíde – Os resíduos deverão estar acondicionados em sacos plásticos resistentes, nas cores identificativas dos conteúdos e com o símbolo de resíduo infectante (branco leitoso ou vermelho). Na recepção dos resíduos na unidade, deve-se tomar todos os cuidados de proteção dos trabalhadores, evitando-se ao máximo o contato com as embalagens, sendo obrigatório o uso de todos os EPIs (macacão, avental impermeável, botas de borracha, luvas vinílicas 3/4, manguito, máscara, viseira, capacete, Etc.). Os resíduos devem ser triturados e homogeneizados para permitir o máximo contato com o calor. A temperatura de reação (dependendo da tecnologia do reator) deverá estar no mínimo entre 400 e 600 ºC.
Como deve ser o descarte dos resíduos de um paciente com COVID-19 nos ambientes hospitalar e residencial?
Walfrido Ataíde – Devido ao grande potencial de transmissibilidade da Covid-19, os descartes e dejetos gerados pelos pacientes em internação domiciliar são considerados “resíduos infecto contagiosos do grupo A1”, sendo eles: “Os Resíduos de Serviços de Saúde (RSS) resultantes da atenção à saúde de indivíduos ou animais com suspeita ou certeza de contaminação biológica por agentes classe de risco 4, por microrganismos com relevância epidemiológica e risco de disseminação, causadores de doença emergente que se tornem epidemiologicamente importantes, ou cujos mecanismos de transmissão sejam desconhecidos, devem ser tratados antes da disposição final ambientalmente adequada”, conforme classifica o art. 48 da RDC 222/2018.
Yuri Schmitke – Quando há um paciente sob a responsabilidade de tratamento domiciliar, assume-se também a corresponsabilidade como “geradores de RSS”, conforme afirma a Anvisa na RDC 222/2018, no seu §1º, do Art 2º: “1º Para efeito desta resolução, definem-se como geradores de RSS todos os serviços cujas atividades estejam relacionadas com a atenção à saúde humana ou animal, inclusive os serviços de assistência domiciliar […]”.
Walfrido Ataíde – Os resíduos gerados pelos pacientes domiciliares devem ser segregados em sacos plásticos vermelhos resistentes, devidamente identificados como “resíduos infectantes”. Aí estão incluídos todos os resíduos produzidos pelo paciente (máscaras, lenços de papel, jornais e revistas, sobras de comida, etc.). Os resíduos perfurocortantes (agulhas, laminas, barbeadores, etc.) devem estar acondicionados em embalagem rígida e identificada com o termo “Resíduo Perfurocortantes Infectado”.
O paciente deve coletar os seus resíduos no próprio ambiente de confinamento (ou o seu cuidador deve fazê-lo), em lixeiras separadas. Esses resíduos só deverão sair do ambiente de confinamento no exato momento da sua coleta, não podendo ficar temporariamente armazenado diretamente sobre o solo, nem junto com os resíduos comuns da residência.
Yuri Schmitke – A grande preocupação da ABREN neste momento é que os estabelecimentos que prestam serviços de saúde e assemelhados (hospitais, postos de saúde, clínicas, consultórios médicos/odontológicos, clínicas veterinárias, farmácias, ateliês de tatuagem, etc.) são obrigados a ter um Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviço de Saúde, devidamente registrado no órgão ambiental e na vigilância sanitária do município para que possam obter o seu alvará́ de funcionamento.
Walfrido Ataíde – Os Serviços Públicos de Limpeza Urbana somente coletam os RSS das unidades de saúde publicas, enquanto as unidades particulares devem contratar a coleta dos RSS diretamente com as empresas especializadas. Em se tratando de serviços “hospitalares” prestados em domicílio, a regulamentação somente atinge os serviços de “Home Care” que retiram os RSS da residência do paciente e dão a eles mesmos o destino adequado.
Yuri Schmitke – Nesse momento de Covid-19, os municípios terão que desenvolver um mecanismo de coleta domiciliar diferenciada para os RSS. Até que essas normas não sejam implementadas, aconselha-se que os pacientes em “internação domiciliar” entrem em contato com o serviço municipal de coleta de resíduos e solicite, caso seja possível, a remoção dos RSS, em horários previamente agendados.
Yuri Schmitke, advogado, presidente da ABREN. Walfrido Ataíde, consultor em Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos.