Diversas tecnologias foram desenvolvidas nas últimas décadas para recuperar a fração energética não reciclável dos resíduos, com grandes avanços nos países da Europa, nos Estados Unidos e no Oriente, principalmente na China e no Japão
Após passar por um processo de reciclagem, os resíduos, tanto os urbanos como os demais (industriais, comerciais, do agronegócio, das estações de tratamento de lodos e os pneus usados), em sua maioria, podem ser usados como fonte de energia térmica, utilizando tecnologias conhecidas mundialmente como Waste-to-Energy (WTE). Desta forma, os resíduos substituem os recursos naturais não renováveis, com grandes ganhos ambientais e sociais. Ou seja, os resíduos passam a ter uma destinação correta, como prevê a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) do Brasil.
Diversas tecnologias foram desenvolvidas nas últimas décadas para recuperar a fração energética não reciclável dos resíduos, com grandes avanços nos países da Europa, nos Estados Unidos e no Oriente, principalmente na China e no Japão. Além disso, diversos países com nível de desenvolvimento até menores que o do Brasil já possuem várias instalações onde resíduos, após a separação dos recicláveis, substituem combustíveis fósseis e, desta forma, reduzem as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e contribuem também com o saneamento básico.
No Brasil, essa destinação ambientalmente adequada dos resíduos está atualmente limitada a algumas poucas práticas, tais como a indústria de cimento, que utiliza resíduos nos fornos, e a agroindústria, que utiliza resíduos como a biomassa em caldeiras.
Nos países mais desenvolvidos, existem, resumidamente, dois grandes grupos de processos de destinação de resíduos para o waste-to-energy:
• Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), gerado nos grandes centros urbanos, em quantidades e características que podem ser utilizados praticamente sem necessidade de tratamento prévio, onde não existe a opção de utilização como combustível em Fornos de Cimento, sendo usados para a geração de energia a vapor, em Usinas Waste-to-Energy, conhecidas como Mass Burn ou Usinas de Recuperação Energética (URE).
• Para os demais casos, onde existe a opção de utilização de resíduos como fonte de energia, posterior ao tratamento do material, em instalações específicas, visando adequá-los previamente à utilização na forma de Combustível Derivado de Resíduos (CDR).
Francisco J. P. Leme, engenheiro
Nas plantas de preparo de CDR, os resíduos passam por processos mecânicos e, em alguns casos, também biológicos, até estarem aptos ao adequado uso. A escolha dos processos necessários depende do tipo dos resíduos, assim como das quantidades de cada uma das frações que os compõem. Nestes processos, podem-se incluir, entre outras operações, a trituração, classificação granulométrica, secagem, sistemas de mistura, peletização e até a separação ótica. Para cada uma dessas etapas, há diferentes ofertas de tecnologias e equipamentos a serem escolhidos, conforme a composição do resíduo e a especificação do CDR a ser gerado.
Existem diferentes tipos de CDRs, por exemplo:
• CDR originário de somente um tipo de resíduo, como chips de pneus inservíveis, “pellets” de lodo de estação de esgotos, “pellets” de resíduos de biomassas e de farinha animal;
• CDR originário de diversos resíduos industriais, onde mais de uma centena de resíduos formam lotes de CDR.
• CDR gerado a partir da coleta regular de resíduos sólidos urbanos e comerciais, conhecido como CDRU;
Além dos CDR’s, o coprocessamento também permite a utilização de resíduos substitutos de matérias-primas, sendo, estes, compostos prioritariamente pelos elementos químicos Cálcio, Silício, Alumínio e Ferro. Elementos, estes, predominantes em solos contaminados, resíduos da indústria de alumínio e areias de fundição, dentre outros.
Vale destacar que o reaproveitamento de resíduos como fonte de energia já era utilizado na Europa desde o final do século XIX, visando, principalmente, o aquecimento de água e a geração de vapor. Em meados dos anos 70 do século passado iniciou-se, tanto no Canadá, como em alguns países da Europa, a atividade de coprocessamento de resíduos em fornos de clínquer (ingrediente principal para a produção de cimento).
O coprocessamento é uma operação desenvolvida pela indústria cimenteira, na qual os resíduos são destruídos nos fornos de produção de clínquer, ao mesmo tempo em que substituem combustíveis fósseis e matérias-primas necessárias. Este processo, em constante evolução tecnológica, além de permitir a completa destruição de resíduos, resulta na preservação de recursos naturais não renováveis (combustíveis fósseis e/ou matérias-primas), reduzindo de forma significativa as emissões globais de Gases de Efeito Estufa.
No Brasil, este processo começou timidamente em meados dos anos 1990, sob impacto da Eco 92, sendo que os primeiros resíduos coprocessados, de forma tecnicamente adequada, eram lascas de pneus inservíveis, utilizados, predominantemente, em fábricas de São Paulo. Mesmo assim, em quantidades que não passavam de 100 t/mês.
Por volta de 1996, iniciaram-se as primeiras tentativas de implantação de coprocessamento de CDR’s preparados a partir de resíduos Industriais Classe I (Resíduos Perigosos). Embora as primeiras tentativas tenham sido feitas em São Paulo, estas não evoluíram, pois houve dificuldades relacionadas à regulamentação e licenciamento ambiental deste “novo” processo, até então inexistente no país. Por outro lado, nos estados do Paraná e do Rio de Janeiro, essa “nova” tecnologia foi seguramente aprovada, após diversos testes, de forma que se pode considerar que a atividade foi preliminarmente regulamentada em 1996.
A primeira grande planta de preparo de CDR do país foi implementada no município de Magé, no estado do Rio de Janeiro, e supria as fábricas de cimento localizadas na região de Cantagalo, também naquele estado.
Um dos principais incentivos ao coprocessamento decorreu da preocupação dos órgãos ambientais com o crescimento dos passivos de resíduos, incluindo pneumáticos inservíveis, que se tornaram significativos riscos de incêndios, assim como criadouros de vetores epidemiológicos e até emissões não controladas. Para o caso dos pneumáticos, a solução começou a delinear-se com a aprovação da Resolução CONAMA Nº 258/1999, em que se estabelecia que os fabricantes e importadores de pneumáticos novos ficariam obrigados a destinar de forma ambientalmente adequada até 5 pneus usados para 4 pneus novos fabricados ou importados.
Neste sentido, a partir do início dos anos 2000, iniciou-se a implementação, em grande escala, do coprocessamento de pneus triturados, o que exigiu a adaptação das instalações das fábricas de cimento, simultaneamente à implementação, por empreendedores nacionais de diversas plantas de trituração de pneus. Rapidamente, o país passou a extinguir os passivos de pneus existentes, ao mesmo tempo em que evitava o crescimento de outros. Em menos de três anos, a regulamentação estava sendo plenamente cumprida – o que se mantém até os dias atuais – e viabilizou a redefinição de metas menos exigentes, tornando o Brasil um bom exemplo quanto à destinação ambientalmente adequada de pneumáticos usados, inclusive dos enormes pneus fora de estrada das grandes mineradoras nacionais.
Desde o início da atividade no Brasil, baseados nos dados da Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) e através de pesquisa junto a diversos técnicos e empreendedores no setor de preparo de CDR, podemos afirmar que a indústria cimenteira já coprocessou mais de 22,5 milhões de toneladas de resíduos, sendo destes aproximadamente:
• 4,0 milhões de toneladas de pneus usados;
• 6,0 milhões de toneladas de resíduos industriais com poder calorífico;
• 8,0 milhões de toneladas de resíduos de biomassa;
• 4,5 milhões de toneladas de resíduos de substituição de matérias-primas.
Para se ter uma dimensão, somente os pneus coprocessados, se alinhados, dariam 1,3 volta ao Planeta Terra na linha do Equador.
Francisco Chaves Jr., engenheiro
Se as 22,5 milhões de toneladas de resíduos coprocessados tivessem continuado a ser enviadas para aterros de 20 metros de altura, seria necessária uma área maior que 1.400.000 m2, o que corresponde a mais de 200 campos de futebol iguais ao Maracanã.
A totalidade de resíduos coprocessados, até 2021, substituiu mais de 11 milhões de toneladas de pet coque (combustível fóssil usado no forno de clínquer) que o país não teve que importar, bem como preservou mais de 5,5 milhões de toneladas de recursos minerais. Recursos estes que correspondem à carga de mais de 600.000 caminhões que foram preservados para gerações futuras.
Com esse processo, foram evitadas as emissões de mais de 20 milhões de teq de CO2, o que corresponde à paralização durante um ano de toda a frota de automóveis da cidade de São Paulo (mais de 6 milhões de carros).
O país tem hoje diversas plantas de preparo (trituração) dos pneumáticos para coprocessamento na indústria cimenteira e em outras destinações, com capacidade de processar a totalidade dos pneus usados gerados no país.
Além do tratamento de pneus inservíveis e resíduos de biomassa, resíduos comerciais e urbanos, o país também tem plantas de preparo de CDR a partir de resíduos industriais em praticamente todos os estados onde há fornos de produção de clínquer. Vale ressaltar que o parque cimenteiro nacional tem a maioria de suas fábricas (em torno de 40 unidades) devidamente licenciadas e preparadas para coprocessar CDR, com uma capacidade de produção superior a 600.000 t/ano, sendo que aproximadamente 80% desta capacidade são de empresas associadas à ABREN.
Nos últimos anos, além dos resíduos industriais, pneumáticos usados e resíduos de biomassa, iniciou se o coprocessamento de CDR de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU). Atualmente, há no país 4 plantas instaladas e enviando milhares de toneladas deste material para serem coprocessados em fábricas de cimento. Até a presente data, mais de 50 mil toneladas de RSU foram transformadas em CDRs e utilizadas como combustível pela indústria cimenteira no país.
Temos que ressaltar o pioneirismo da cidade de Cantagalo, incentivada pelo órgão ambiental do estado (FEEMA), que, com suporte da indústria cimenteira, iniciou de maneira inédita o coprocessamento de RSU da cidade no início dos anos 2000.
Nos últimos anos, a indústria cimenteira atingiu o patamar de substituição térmica de combustíveis fósseis por CDRs acima de 25%, com algumas plantas atingindo níveis em torno de até 50% de substituição.
Um outro ganho ambiental refere-se ao fato de que a operação de coprocessamento exige controles operacionais e ambientais mais precisos.
Neste período de início do coprocessamento, os órgãos ambientais adotaram critérios mais exigentes, da mesma forma que a operação do processo também passou a ser muito mais aprimorado.
A indústria de cimento desenvolveu o seu Roadmap Tecnológico do Cimento (2019) visando à redução de suas emissões de Gases de Efeito Estufa, documento construído em conjunto com instituições internacionais, como IFC (International Finance Corporation), Banco Mundial, IEA (International Energy Agency) e Academia, indica a ampliação da atividade coprocessamento de CDRs como uma das principais ferramentas para atingir seus objetivos de reduzir estas emissões.
A expansão do consumo da indústria de cimento prevê, para as próximas duas décadas, mais que dobrar o nível de substituição de combustíveis fósseis por CDR, e com isto reduzir suas emissões de teq de CO2. Com isso, haverá o crescimento da atividade de coprocessamento em cerca de 3 milhões de toneladas de CO2 /ano (ano base 2014), visando, assim, cumprir o compromisso global de redução das emissões.
Estudos realizados pela ABREN preveem que, nas próximas décadas, o país deverá ampliar a sua capacidade de produção de CDR para atender às demandas não somente da indústria cimenteira, mas também de outros processos, como a geração de energia elétrica e vapor, requerendo somente no preparo de CDR de RSU, 17 milhões de toneladas de resíduos a serem tratados e transformados em CDR e composto orgânicos e recicláveis, com significativo aumento dos números plantas específicas para tal finalidade. Para isso, dezenas de novas plantas de produção de CDR terão que ser instaladas, com investimento previsto em mais de R$ 20 bilhões.
O esforço da ABREN certamente será coroado ao viabilizar a correta de destinação aos resíduos, valorizando-os e gerando riqueza, trabalho, investimentos, redução das emissões de Gases de Efeito Estufa e preservação dos recursos naturais para as presentes e futuras gerações.
Francisco J. P. Leme é Diretor Executivo da W4Resources. Engenheiro de Minas na Escola Politécnica da USP. Especialização em Administração Empresas pela CEAG-FGV. Conselheiro da ABREN. Professor do MBA Recuperação Energética e Tratamento de Resíduos da FGV. Francisco Chaves Jr é Sócio da EcoEnergética. Engenheiro Químico pela UFPE. MBA Exec. Gestão Empresarial FGV. Atuação na área industrial, em tratamento de resíduos e elaboração de Normas Técnicas e Ambientais.
Nota dos Autores: Além do apoio baseado na documentação da ABCP e Associadas, também contamos com a colaboração dos seguintes profissionais, entrevistados para a redação deste artigo: Pedro Parigot, José Eduardo Cavalcanti e Amauri Marchi Junior.