A tecnologia que transforma o lixo não reciclável em energia elétrica e térmica é uma realidade em diversos países, mas ainda enfrenta desinformação e resistência no Brasil
Por Nickolas J. Themelis e Yuri Schmitke
A gestão dos resíduos sólidos urbanos (RSU) tem sido, há anos, um grande desafio na busca pela destinação adequada do lixo gerado diariamente pela população brasileira. Entre os cinco países que mais geram lixo no mundo, com cerca de 82 milhões de toneladas por ano e com um índice baixo de reciclagem, inferior a 3%, o Brasil está consideravelmente atrasado na destinação correta do lixo urbano, na contramão do que fazem os países mais desenvolvidos do globo. A Alemanha, por exemplo, recicla 32% dos resíduos urbanos, 46% são destinados à incineração com recuperação energética (waste-to-energy) e o restante é destinado à compostagem (22%), e desde 2005 somente resíduos inertes podem ser depositados em aterros.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída em 2010 pela Lei Federal n.º 12.305, trouxe metas relevantes para mudar esse panorama. A PNRS prevê o encerramento de todos os lixões e aterros controlados no Brasil, que hoje recebem 39,5% de todo o lixo urbano do País, até 2024. Depois de 12 anos do lançamento da PNRS, esse panorama não mudou e o lixo da população brasileira ainda é destinado de forma inadequada, o que prejudica a saúde pública, em razão das emissões tóxicas e da contaminação da água potável.
Um dos caminhos mais indicados para mudar esse cenário e destinar de forma ambientalmente adequada os resíduos sólidos urbanos é a recuperação energética, tecnologia que, inclusive, consta na PNRS. Porém essa atividade, utilizada há mais de 50 anos em diversos países e que conta com mais de 2,5 mil usinas em funcionamento ao redor do mundo, praticamente inexiste no Brasil, seja pela falta de incentivos ou por uma série de desinformações disseminadas de forma recorrente com o objetivo de favorecer interesses escusos.
A cargo de exemplo, os resíduos não recicláveis de Japão (70%), China (55%), União Europeia (30%) e EUA (12%) são processados em Usinas de Recuperação de Energia (UREs), local onde o lixo é transformado em energia elétrica e térmica. Além disso, diversos países em desenvolvimento construíram ou estão construindo esse tipo de usina, que contribui, ao mesmo tempo, com o saneamento básico e com o setor de energia. Vale destacar ainda que, diferentemente do que se imagina, os países que utilizam a recuperação energética de resíduos são também aqueles que mais reciclam, pois só é enviado para uma URE o lixo não reciclável, conforme apontam estatísticas da União Europeia e do Banco Mundial.
O Brasil, ao contrário das boas práticas mundiais, está ainda em processo de construção de sua primeira URE, localizada em Barueri (SP). A planta deve iniciar suas operações em 2025, mas o setor já enfrenta resistência, além de ser alvo de uma série de inverdades e fake news que, se não esclarecidas, podem comprometer o futuro da recuperação energética de resíduos no Brasil e, de quebra, prejudicar as metas da PNRS. Vale ressaltar que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), aprovado pelo Decreto Federal n.º 11.043/2022, prevê 994 MW de potência instalada em usinas de recuperação energética (combustão) e 350 MW de biogás de aterro até 2040.
A COP-27, realizada em novembro passado no Egito, assim como suas antecessoras, teve como um dos principais objetivos a busca por acordos para reduzir a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEEs) e mitigar as catástrofes das mudanças climáticas, o que só pode ser feito por meio de um conjunto de ações. Uma das iniciativas mais indicadas, sem dúvidas, é a redução dos aterros sanitários, além de proporcionar políticas que incentivem a aplicação da tecnologia alternativa existente, a recuperação energética de resíduos.
A geração de metano a partir de aterros é uma das principais fontes de emissão de GEEs para a atmosfera. De acordo com um estudo do Banco Mundial, cerca de 1,2 bilhão de toneladas de resíduos sólidos não recicláveis é depositado em aterros anualmente. O Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) estimou que, para um horizonte de 20 anos, o efeito de uma tonelada de metano equivale a 80 toneladas de dióxido de carbono. Com base nesses dados, é possível aferir que a geração global de metano de aterros sanitários é equivalente a algo entre 1,5 bilhão e 4,3 bilhões de toneladas de dióxido de carbono.
De acordo com uma série de estudos realizados utilizando medições diretas de plumas de metano de aterros sanitários pela Nasa, as emissões medidas são em média mais do que o dobro das emissões relatadas nos atuais inventários de GEE. Com base neste conjunto de dados, é possível afirmar que as emissões de metano de aterros sanitários são comparáveis às emissões de metano de todo o setor agrícola nos EUA, por exemplo.
O metano, inclusive, é o segundo maior impulsionador da mudança climática. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), “cortar o metano é a alavanca mais forte que temos para desacelerar a mudança climática nos próximos 25 anos”. No curto prazo, reduzir as emissões de poluentes climáticos de vida curta, como o metano, é mais eficaz do que reduzir o CO2. Além disso, o Brasil é signatário da meta da COP-26 de redução de 30% do metano até 2030, e a recuperação energética é uma grande aliada nesse objetivo.
A recuperação energética, por outro lado, além dos benefícios já listados, é comprovadamente a solução mais eficaz para a mitigação dos GEEs do lixo urbano, conforme consta no 5.º Relatório do IPCC. Segundo o estudo, as usinas de recuperação energética reduzem em 8 vezes as emissões de gases de efeito estufa quando comparadas a aterros com sistema de captura de metano, pois apenas 50% do metano é passível de captura em aterros sanitários, e são a forma mais eficaz para mitigação dos gases de efeito estufa dos RSU.
Além disso, estudos realizados há mais de 20 anos apontam que as emissões atmosféricas das usinas de recuperação energética, decorrentes do processo de incineração, são inofensivas à saúde humana e estão 70% abaixo dos limites permitidos pelas regulações mais restritivas dos EUA e da União Europeia. Não por menos, a grande maioria dessas usinas se situa dentro de grandes cidades europeias. Paris, por exemplo, tem três usinas que se situam no centro e atendem a toda a cidade.
Utilizando como base os estudos mencionados e esclarecendo os reais benefícios da recuperação energética de resíduos, fica evidente como essa tecnologia pode contribuir para que o Brasil possa alcançar as metas da PNRS para acabar com lixões e aterros sanitários e, ainda, aumentar o porcentual de resíduos que são reciclados no País. Para isso, além de acabar com as inverdades relacionadas a essa atividade, é essencial que haja incentivos para que a recuperação energética saia da teoria e possa ganhar escala nas principais regiões do Brasil. Trata-se de uma necessidade nacional, mesmo que inconveniente para quem insiste em propagar teorias infundadas a respeito dessa tecnologia.
NICKOLAS J. THEMELIS, professor emérito de Earth and Environmental Engineering, Columbia University, presidente emérito e fundador do Global WtERT Council (GWC), Ph.D. pela McGill University (Montreal, Canadá), eleito membro da Academia Nacional de Engenharia dos EUA e coautor da seção de gerenciamento de resíduos no IPCC de 2014;
YURI SCHMITKE, presidente executivo da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren), vice-presidente Latam do Conselho Global do Waste-to-Energy Research and Technology Council (GWC), presidente do WtERT Brasil, mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCeub e professor da FGV no MBA em Administração: Recuperação Energética e Tratamento de Resíduos.
A notícia é do Estadão. Confira na íntegra: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/recuperacao-energetica-de-residuos-no-brasil-uma-necessidade-inconveniente/