A transição energética justa e a descarbonização do setor de gás natural brasileiro exigem que as políticas públicas assegurem a integridade climática e a rastreabilidade das emissões.
No contexto da Consulta Pública nº 199, que define as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) para o ano de 2026, é imprescindível que as metodologias adotadas respeitem os parâmetros legais fixados na Lei nº 14.993/2024 (Lei do Combustível do Futuro), cuja meta é expressa em CO₂ equivalente (CO₂eq) — e não em métricas puramente volumétricas de biometano.
O biometano é um vetor energético estratégico para o cumprimento dos compromissos climáticos do Brasil, mas seu potencial de mitigação depende diretamente da origem da matéria-prima e da eficiência do processo de captura de metano. Nesse sentido, o reconhecimento das diferenças entre as rotas de produção — biodigestão anaeróbia controlada e biogás de aterro sanitário — é essencial para garantir que a política pública de descarbonização seja justa, científica e efetiva.
A Lei nº 14.993/2024 estabelece que a meta de descarbonização do gás natural deve ser mensurada em CO₂eq, refletindo reduções reais de emissões. Assim, a conversão volumétrica admitida pelo Decreto nº 12.614/2025 (que regulamenta o Certificado de Garantia de Origem do Biometano – CGOB) tem caráter meramente técnico e não pode alterar o conteúdo material da lei.
A eventual equiparação entre biometano de aterro e de biodigestão anaeróbia, ignorando o maior potencial de descarbonização da biodigestão, representa excesso de poder regulamentar, pois desvirtua a finalidade da lei e transforma um instrumento climático em mera contabilidade de volumes. A mensuração em CO₂eq deve permanecer o parâmetro central para garantir o valor ambiental e jurídico das metas.
As rotas de biodigestão anaeróbia ocorrem em ambiente fechado, hermético e controlado, com eficiência de captura próxima a 100%, impedindo a formação e liberação de metano para a atmosfera. Trata-se de uma rota de mitigação ativa, com intensidade de carbono líquida negativa.
Para além da diferença na eficiência de captura e dos custos de investimento envolvidos nas diferentes fontes de biogás, também é relevante considerar o ciclo de carbono associado a cada rota. A biodigestão anaeróbia trata substratos renováveis e biogênicos (resíduos agropecuários, de laticínios e frigoríficos), cujo carbono já faz parte do ciclo curto da biomassa.
Segundo a IEA Bioenergy Task 37 (2025), sistemas de biodigestão anaeróbia controlada apresentam perdas médias de metano inferiores a 1 %. Contudo, a metodologia proposta pela EPE na Nota Técnica NE-EPE-DPG-2025-02 adota um modelo linear que não contabiliza tais benefícios, resultando em subestimação das emissões reais e em sobrevalorização de fontes menos sustentáveis.
Propõe-se que a EPE adote parâmetros de emissões, como por exemplo, os das diretrizes do IPCC 2019 for National Greenhouse Gas Inventories, incluindo fatores de correção para eficiência de captura e para composição do resíduo, de modo a refletir o balanço real de metano liberado versus evitado.
Essa prática viola os princípios da legalidade, da finalidade e da eficiência administrativa, previstos na Constituição Federal, pois a regulamentação não pode contrariar o comando da lei. O Decreto do CGOB deve apenas operacionalizar o que a lei definiu — e não reinterpretar o parâmetro de descarbonização.
O Brasil possui um dos maiores potenciais mundiais de biogás, estimado em 84,6 bilhões de m³/ano, sendo mais de 90% proveniente de resíduos agropecuários e agroindustriais. A biodigestão anaeróbia transforma passivos ambientais em ativos energéticos, reduz emissões de metano, substitui fertilizantes sintéticos e fortalece economias locais.
Defende-se, portanto, que o CGOB adote um sistema de rastreabilidade aprimorado, com emissões declaradas por rota de origem, baseadas em dados reais de captura e destinação, assegurando comparabilidade internacional e evitando distorções frente a práticas internacionais. A diferenciação regulatória entre as rotas, com valoração específica por intensidade de emissões, é a forma mais justa e eficaz de cumprir os compromissos do Brasil com o Acordo de Paris e o Global Methane Pledge.
Para que a Consulta Pública nº 199 produza resultados compatíveis com os objetivos da Lei do Combustível do Futuro, recomenda-se:
a) Revisar a metodologia da EPE, incorporando fatores de emissão ajustados pela eficiência real de captura de metano e pelo tipo de resíduo processado;
b) Incluir no CGOB a obrigatoriedade de registro da origem e da intensidade de carbono líquida de cada rota de biometano, com desconto proporcional às emissões fugitivas;
c) Valorizar economicamente o biometano de menor pegada de carbono, priorizando o de biodigestão anaeróbia nos instrumentos de incentivo, financiamento e precificação;
d) Assegurar o cumprimento do parâmetro legal de CO₂eq, evitando a substituição indevida por métricas volumétricas que desvirtuem o objetivo de descarbonização;
e) Estabelecer faixas de emissão padrão por rota, privilegiando as fontes que têm menor pegada de carbono em toda a cadeia (do poço à roda).
A regulamentação das metas de biometano deve refletir a realidade climática e tecnológica do país, reconhecendo que nem todas as moléculas de biometano possuem o mesmo impacto ambiental. A diferenciação entre rotas é condição indispensável para garantir a efetividade climática, a segurança jurídica e a credibilidade internacional da política brasileira de descarbonização.
As entidades signatárias reafirmam seu compromisso com um setor energético mais limpo, eficiente e inclusivo, defendendo uma regulamentação que valorize soluções tecnológicas de maior impacto positivo e que coloque o Brasil na liderança global da transição para uma economia de baixo carbono.
Entidades Signatárias:
Associação Brasileira de Energia de Resíduos – ABREN
Associação Brasileira do Agronegócio – ABAG
Associação Brasileira de Proteína Animal – ABPA
Organização Avícola do Estado do Rio Grande do Sul – Asgav/Sipargs
Centro Nacional das Indústrias do Setor Sucroenergético e Biocombustíveis – CEISE Br

