Com a perspectiva de desenvolvimento da fonte de recuperação energética de resíduos, presente no leilão A-5, fornecedores globais se preparam para atender mercado brasileiro
Por Marcelo Furtado
Às vésperas do primeiro leilão com produto exclusivo para usinas termoelétricas a partir de resíduos sólidos urbanos, o A-5, marcado para 30 de setembro, a cadeia de fornecedores para essas usinas, ainda inéditas na América Latina, começa a se movimentar no país. A bem da verdade em uma etapa incipiente, sondando possíveis parceiros locais, expandindo suas ofertas para o setor no caso de grupos globais já estabelecidos no Brasil e em outros casos contratando seus primeiros executivos para desenvolver uma nova operação brasileira, a ideia é estar pronto para quando a demanda surgir de fato.
Essas empresas que lideram o mercado global são fornecedoras sobretudo do conjunto principal de equipamentos das usinas WTE (de waste to energy), que envolve o sistema de combustão (área da fornalha, com queimadores, grelha e o design da fornalha), a caldeira para gerar vapor e o sistema de tratamento das emissões gasosas. Elas fornecem para as usinas a engenharia e os equipamentos e algumas delas também participam do EPC da obra, seja de forma direta ou na supervisão. Outros players do mercado são dedicados mais à operação das unidades.
Já estão entrando no país, por exemplo, a norte-americana Babcock & Wilcox (B&W), fornecedora desses sistemas completos, que já conta com um executivo brasileiro para coordenar a implantação de operação local, e a suíça-japonesa Hitachi Zosen Inova, também com a tecnologia central do WTE e atuante ainda no EPC das obras das usinas, cuja operação internacional já incluiu o Brasil na sua estratégia.
Também se estruturam para atender ao mercado brasileiro grupos dedicados à operação, e que ainda participam do desenvolvimento e do investimento das usinas, como é o caso das francesas Veolia e Suez e da espanhola Sacyr. A Veolia, já há muitos anos no Brasil principalmente no mercado de tratamento de água e efluentes, criou recentemente área de recuperação energética de resíduos na subsidiária local.
Outro exemplo é a dinamarquesa Ramboll, empresa de consultoria e engenharia com foco em WTE que, a exemplo da B&W, da Hitachi Zosen Inova, Veolia e da Sacyr, se associou neste ano à Abren, entidade criada em 2019 para defender os interesses do ainda imaturo mercado brasileiro.
B&W se estrutura
O caso da Babcok & Wilcox é bastante emblemático do momento. Uma das líderes globais, com mais de 500 fornecimentos para WTE, a empresa conta com um executivo no Brasil para estruturar a operação, coordenar os contatos com a cadeia futura de suprimento e, enfim, se preparar para a possível criação do mercado, inclusive conversando com os donos de projetos de usinas que participarão do leilão.
Segundo o responsável pela B&W, Marcos Peraceli, não haverá dificuldades para desenvolver os projetos caso eles estreiem logo no A-5, pois há localmente indústrias capazes de atender boa parte das demandas para construção dos sistemas das novas usinas. Além disso, há globalmente soluções rápidas e de custo competitivo para completar as necessidades dos projetistas.
No Brasil, por exemplo, há condições de se encomendar turbinas a vapor de alta qualidade e nas potências necessárias. Isso porque um empreendimento de grande porte, com caldeira capaz de processar 1 mil toneladas por dia de lixo urbano, segundo Peraceli, tem combustível suficiente para uma potência de 30 MW. Empresas como Siemens e TGM produzem no Brasil turbinas desse porte.
Também no outro sistema importante da usina, o de controle de emissões, responsável por até 50% do custo do capex, há empresas capacitadas que fabricam equipamentos para retenção de particulados, como os precipitadores eletrostáticos e filtros de manga, amplamente utilizados em outros setores industriais. O mesmo ocorre nas demandas de controle de emissões de enxofre (dessulfurizadores) e de NOx (catalisadores). De acordo com o executivo, a maior parte das tecnologias têm produção local e alguns polos industriais, como o de Sertãozinho, no interior paulista, que atende a demanda de caldeiraria do setor sucroenergético, deverá ser útil para os futuros fornecimentos.
Apenas em alguns itens mais específicos da engenharia das usinas poderá ser mais complicado encontrar fornecedor local, como em partes internas das grelhas móveis, onde os resíduos caem dentro da caldeira para ser incinerados e que exigem revestimentos especializados. Mas mesmo assim, segundo Peraceli, há fornecedores globais – e mesmo a B&W, com fábricas no México, Índia e China – que podem atender com facilidade as demandas específicas, a um custo viável.
A caldeira e o sistema de combustão, de acordo com o executivo, são o coração da usina e onde há a engenharia mais especializada em razão do ambiente agressivo provocado pela incineração dos resíduos. Por conta disso, ela precisa ser revestida com ligas metálicas de inconel (níquel-cromo), que resistem à alta corrosividade dos gases ácidos formados dentro da caldeira. Mas nesse caso, havendo necessidade, há fornecedor local do revestimento, a empresa AZZ, com unidade em Barueri (SP), que atende a mesma demanda de revestimento em caldeiras de recuperação química da indústria nacional de papel e celulose, que utiliza como combustível o agressivo licor negro (resíduo da celulose).
Para as cidades menores
A solução das usinas de grande porte com incineração (mass burning) precisa de escala para se tornar viável, acima de 600 t/dia de resíduos sólidos urbanos. Isso faz a tecnologia ser aplicada em cidades acima de 600 mil habitantes ou então em consórcios de municípios que reúnam essa população. Para cidades menores, não interessadas em se consorciar, e que resolvam deixar de lado os aterros (ou os lixões, caso comum no Brasil), há outras soluções térmicas já disponíveis, como a pirólise e a gaseificação, processos com a capacidade de transformar até 95% dos resíduos em gás de síntese (syngas) ou óleo de pirólise. As tecnologias são total ou parcialmente ausentes de oxigênio e por conta disso sem emissões, já que não se trata de combustão.
Uma oferta com potencial é da Zeg Ambiental, do grupo Capitale Energia. Depois de alguns anos de desenvolvimento, a empresa criou uma solução própria, já com seus primeiros fornecimentos, e que seria um meio termo entre a pirólise e a gaseificação. Segundo o diretor da Zeg, André Tchernobilsky, a solução foi criada a partir da reengenharia da pirólise (processo térmico com ausência de oxigênio) para tornar o processo mais eficiente, sem gerar o chamado óleo de pirólise, que precisaria ser refinado e comercializado, e ter como resultado um gás (syngas) com maior poder calorífico para uso como combustível.
Segundo Tchernobilsky, dois sistemas entrarão em operação neste ano para uso em indústrias. O primeiro, que será inaugurado ainda em agosto, será em empresa do grupo Ouro Fino, em Uberaba (MG), e processará até 50 t/dia de resíduos perigosos de agroquímicos, como bombonas e sementes contaminadas. O syngas gerado substituirá 100% do GLP empregado em incinerador de resíduos hospitalares.
O segundo projeto, previsto para outubro, é na Votorantim Metais, em Juiz de Fora (MG), e vai converter resíduos oriundos de carros triturados, para substituir 50% dos combustíveis fósseis (gás natural e GLP) em caldeira que gera vapor para usina de zinco.
Mas há mais quatro contratos já assinados, sendo três para processar resíduos sólidos urbanos de cidades, duas no estado de São Paulo e uma no Rio Grande do Sul. Nesses casos, os projetos envolvem a construção de ecoparques, nos quais há central de recebimento do lixo, de triagem com cooperativas de reciclagem e etapa de secagem que remove umidade dos resíduos. O resultado disso, além do aproveitamento dos recicláveis, é a geração do chamado CDR (combustível derivado de resíduo), com maior poder calorífico e que alimenta o reator.
Os projetos nos municípios entrarão em operação até o fim de 2022 e contarão com usinas termelétricas para gerar energia a partir do syngas. No Rio Grande do Sul, serão processadas 280 toneladas por dia de resíduos urbanos, com usina de 12 MW, nos de São Paulo serão um de 40 t/dia (2 MW) e outro para 230 t/dia (10 MW). Sem poder revelar os nomes das cidades, Tchernobilsky revela que haverá uma captação de R$ 250 milhões para os projetos, sendo a controladora Capitale a responsável pela operação financeira
O foco da empresa é vender o serviço para indústrias e para cidades de 12 mil até 500 mil habitantes. Como os reatores são modulares, com capacidade padrão para 50 t/dia, é possível colocar por exemplo cinco reatores para atender o processamento de 500 t/dia de lixo urbano, volume gerado por 500 mil pessoas em média. Cada tonelada de resíduo pode gerar de 1 MW a 2 MW.
Potencial gigantesco
A expectativa da cadeia de fornecedores com o mercado futuro não é fortuita. Embora o Brasil não tenha nenhuma usina de WTE, o potencial é muito grande. Segundo o consultor Flavio Matos, também conselheiro da Abren, somente nas 28 regiões metropolitanas do Brasil, com mais de 1 milhão de habitantes, onde são geradas 39 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos por ano (53% do total), há a possibilidade de se implantar 129 usinas de 20 MW de potência média. Neste cenário, seria possível acrescentar cerca de 2,6 GW na matriz e os investimentos atraídos seriam de R$ 80 bilhões.
Para Matos, o potencial não se limita a essas regiões. Municípios que se consorciam, como é o caso do projeto Consimares (Consórcio Intermunicipal de Manejo de Resíduos Sólidos da Região Metropolitana de Campinas), de 22 MW, cadastrado no leilão A-5 e que reúne 7 cidades do interior paulista, também criam escala mínima de viabilidade econômica para usinas WTE, ou seja, por volta de 600 a 700 toneladas por dia de resíduos. Trata-se de grande mercado adicional a ser criado.
Na verdade, a constatação de que há muito ainda a se fazer em recuperação energética de resíduos vale também para o contexto global. Segundo a dados da consultoria A. Vaccani & Partners AG, no período de 2020-2024 estão projetados investimento globais de mais de 9 bilhões de euros em WTE, com maiores potenciais de mercado para China, Europa, Oriente Médio e África. Mundialmente, nos próximos cinco anos a estimativa é de 102 novas usinas para tratar 23 mil t/dia de resíduos urbanos.
Nos últimos dez anos, ainda de acordo com a consultoria, na Europa, Oriente Médio e África, mas principalmente na primeira, foram adicionados mais de 84 mil t/dia de nova capacidade de tratamento por WTE, em 121 novas unidades. Já a China adicionou mais de 520 mil t/dia no mesmo período, em 521 usinas de recuperação energética. O mercado asiático (excluindo Japão e China e incluindo a Oceania) adicionou mais de 34 mil t/dia em 44 usinas WTE e o Japão sozinho mais de 34 mil t/dia também no mesmo período, em 144 instalações.
Depende de preço
A perspectiva de crescimento do mercado global de WTE pode ser ainda maior caso o Brasil se insira na tecnologia nos próximos anos. E para isso o sucesso do leilão A-5 é fundamental, segundo avaliação do presidente executivo da Abren, Yuri Schmitke, por viabilizar o financiamento e a construção das usinas de grande porte com contratos de energia de longo prazo. A taxa pelo tratamento do lixo (gate fee), complementa a contabilidade dos projetos.
Porém, para Schmitke, muito do sucesso da primeira versão do certame para a fonte depende diretamente do preço inicial da tarifa que será definido. Nos cálculos dos empreendedores, ele precisaria ser acima de R$ 600/MWh.
Mais especificamente, a Abren defende que para tornar os projetos viáveis o preço deveria começar com R$ 670/MWh em 2024, o que permitiria que ele fosse reduzido a uma média de 2,6% ao ano (por volta de R$ 17,30/MWh) até chegar a R$ 250/MWh. Até 2040, com esses valores, a tarifa média no período seria de R$ 329/MWh.
Compartilha da mesma opinião Antonio Bolognesi, da consultoria Wteec, que está envolvida na estruturação de vários projetos de WTE no Brasil, incluindo o projeto Consimares.
Para ele, a necessidade do preço elevado da tarifa, que precisaria ser subsidiado aos moldes do Proinfa, se explica em razão dos altos custos dos sistemas da usina de WTE, construídas com materiais de alta resistência e com caro tratamento de emissões
Além do preço inicial acima dos 600 reais, para Bolognesi é fundamental também que o certame tenha quantidade mínima de contratação para a fonte na ordem de 250 MW, para iniciar os investimentos no país em uma escala viável para os empreendedores.
Foram cadastrados pela EPE no leilão 12 projetos de recuperação energética de resíduos, totalizando 315 MW, sendo 254 MW de projetos em São Paulo, 31 MW no Rio de Janeiro e mais 30 MW no Paraná. Os principais projetos são a URE Mauá (77 MW), URE Barueri (20 MW) e o Consimares (22 MW), além do projeto da Ciclus Ambiental (30 MW) no Rio, todos estes já com licença prévia e, portanto, mais prováveis de serem habilitados para o leilão.
FONTE: https://editorabrasilenergia.com.br/wte-expectativa-de-grandes-obras/