Startups aproveitam maior geração de lixo domiciliar na pandemia, que cresceu 4%; Brasil é quarto maior produtor de resíduos, com quase 40% descartados inadequadamente
Jorge C. Carrasco
Transformar o lixo em energia foi por muito tempo um sonho restrito aos filmes de ficção científica. Contudo, num mundo que enfrenta quantidades crescentes de lixo, algumas empresas criam soluções para converter os resíduos orgânicos domésticos em combustível. Esse é o trabalho que vêm desenvolvendo algumas cleantechs — startups que, com o uso de tecnologias inovadoras, desenvolvem produtos ou serviços que reduzem impactos ambientais.
Para Verner Cardoso, fundador e diretor operacional da cleantech RSU Brasil, o avanço das pautas ambientais tem impulsionado o crescimento de empresas como a dele. “Criar uma tecnologia para resolver o nosso problema atual com o lixo e ao mesmo tempo substituir o uso de combustíveis fósseis por energia limpa sempre foi uma aspiração”, diz Cardoso.
Fundada em 2010 no interior de São Paulo, a RSU Brasil é especializada no tratamento de resíduos orgânicos e outros rejeitos que não podem ser reciclados diretamente — como fraldas e papel higiênico — para a geração de energia elétrica, numa lógica de desenvolvimento sustentável.
A empresa já tratou mais de 2 mil toneladas de lixo, recuperando cerca de 500 toneladas de matéria-prima reciclável e transformando a não-reciclável em biomassa por meio do que chama de Processo Biodigestor Rotativo. Essa biomassa posteriormente é depositada em caldeiras, cujo vapor resultante movimenta um gerador para criar energia elétrica.
Em 2018, a RSU Brasil foi selecionada para fazer parte do programa Aceleradora 100+ da Ambev, o que alavancou seu crescimento e a expansão dos seus projetos de plantas processadoras. Com mais de R$ 4 milhões em investimento, a cleantech procura ampliar seus processos em 2022, com a meta de tratar os resíduos de pelo menos 30 milhões de pessoas nos próximos anos.
Verner Cardoso, fundador da cleantech RSU Brasil
“Na pandemia, enfrentamos algumas dificuldades, mas ao mesmo tempo a gente viu a verdadeira evolução do mercado de resíduos”, disse Cardoso. “Com o aumento dos resíduos domiciliares nesse período, vimos uma maior oportunidade para reestruturar a nossa tecnologia e nos posicionarmos no mercado. Quanto mais conseguirmos reciclar esse material, mais contribuímos com o ambiente”, pondera.
Aumento do lixo doméstico
Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), a maior parte do lixo no Brasil é descartado e, nos últimos dois anos, pelo menos 39,8% desses resíduos foram descartados inadequadamente. O País, que já é o quarto maior produtor de lixo do mundo, viu desde 2020 a quantidade de resíduos sólidos gerados nos domicílios aumentar cerca de 4%, com uma média de 1,07 milhão de toneladas.
Diante desse cenário, as cleantechs focadas no tratamento de rejeitos estão encontrando oportunidades para fazer negócios de impacto. “Temos notado um crescimento de soluções para transformar resíduos em energia, principalmente nos últimos três anos”, diz Yuri Schmitke, presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren), instituição que promove boas práticas de gestão de resíduos.
De acordo com ele, os principais fatores que contribuíram para esse crescimento estão atrelados à edição de normas e regulamentos que favoreceram o setor. Em abril de 2019, por exemplo, os Ministérios do Meio Ambiente, de Desenvolvimento Regional e de Minas e Energia editaram a Portaria Interministerial 274, regulamentando as usinas de recuperação energética de resíduos sólidos urbanos.
Em julho do ano seguinte, foi editado o novo marco do saneamento, que definiu a obrigatoriedade de todos os municípios do Brasil cumprirem com os contratos de concessão para as etapas de gestão de resíduos sólidos. Já em setembro de 2021, ocorreu o primeiro leilão específico do Ministério do Meio Ambiente para a contratação de usinas de recuperação energética de resíduos.
Segundo o presidente da Abren, há espaço no Brasil para o crescimento de iniciativas de transformação de resíduos em energia, porém Schmitke acredita que “falta uma maior interlocução entre todos os atores envolvidos” para que o setor consiga progredir com maior força nos municípios.
Para a Abren, o setor tem o potencial de atrair até R$ 5 bilhões neste ano e mais de R$ 50 bilhões nos próximos dez anos, contribuindo com a redução de 3 milhões de toneladas de CO2 por ano e com a geração de cerca de 150 mil empregos diretos.
Combustível a partir do óleo de cozinha
Outra startup que viu oportunidades no setor é a BChem, uma cleantech que produz biodiesel utilizando óleos descartados e gorduras residuais. A empresa, que nasceu como resultado de uma parceria para desenvolvimento tecnológico entre a Universidade de Itaúnas e o Grupo de Tecnologias Ambientais do Departamento de Química da UFMG, quer gerar combustível sustentável e eficiente levando seus processos para onde estão os resíduos, e não da forma contrária.
Com esse fim, a BChem desenvolveu uma usina móvel de biodiesel, que possui a capacidade de produzir até 30 mil litros de combustível por mês. “No Brasil, milhares de litros de óleo vegetal são utilizados toda semana na fritura de alimentos, gerando enormes quantidades de óleo residual. Nós vimos nisso a necessidade de desenvolver uma tecnologia sustentável que utilizasse essa matéria-prima poluente e de baixo valor agregado para criar um combustível mais limpo e acessível”, afirma Alex Brasil, sócio-fundador da BChem.
O biodiesel produzido pela empresa é certificado pela Agência Nacional de Petróleo e, de acordo com o fundador da startup, o combustível é 80% menos poluente que o diesel comum e tem poder lubrificante maior.
Atualmente a empresa desenvolve diversos projetos com algumas organizações de grande porte que investem na sua ideia, como a Fiat e a Gerdau. Em 2018, por exemplo, a Gerdau anunciou o lançamento do programa Bionergia Social em parceria com a BChem, cujo objetivo é conscientizar a população sobre o descarte incorreto do óleo, gerar empregos e produzir grandes quantidades de energia renovável com o biodiesel para a sua utilização nos processos industriais.
“A logística é o nosso maior desafio. A gente precisa de volumes muito grandes de matéria-prima, e esse óleo residual está espalhado por todo o País”, ponderou Alex Brasil. “O nosso objetivo é ampliar o número de unidades de usinas móveis para atingir um maior número de pessoas e continuar causando um impacto positivo no ambiente.”
O CEO da ZEG Ambiental, André Tchernobilsky, acredita que parte da solução para o problema dos resíduos urbanos se encontra no trabalho com os municípios para a realização de projetos mais baratos e eficientes, que consigam processar o lixo em diversas etapas, proporcionando uma economia circular às comunidades.
“O Brasil é um grande conglomerado de pequenos municípios, por isso, a realidade econômica de um aterro sanitário adequado, com uma correta captação de metano, por exemplo, está fora de alcance para a maioria”, diz ele.
Na ZEG Ambiental, o foco do negócio são eco-parques de processamento de lixo, para recuperar resíduos recicláveis e transformar os rejeitos não recicláveis — que podem conter tanto rejeitos alimentares quanto plásticos, tecidos e borrachas — em biogás, que subsequentemente é vendido para empresas de diversos setores.
Fundada em 2012, a cleantech possui um capital total investido de R$ 40 milhões até o momento e espera receber até o final de 2022 mais um aporte de R$ 10 milhões do Grupo Capitale.
Após anos de pesquisas e aprovação ambiental, a empresa saiu de uma fase final de validação de tecnologia em 2020 para a construção de duas plantas de processamento de resíduos em 2022, em Juiz de Fora e em Uberaba. Neste ano, além de trabalhar na implementação dessas duas plantas, a empresa encontra-se desenvolvendo mais cinco projetos ao redor do Brasil.
FONTE: https://bit.ly/3Igjx9d