O Brasil está cerca de 50 anos atrasado em comparação com o resto do mundo quando se trata da recuperação energética de resíduos
Por Yuri Schmitke e Claudio Girardi
O Brasil possui um dos maiores potenciais do mundo para geração de energia elétrica a partir de resíduos, uma solução que, além de reduzir impactos ambientais, contribui para o saneamento básico e o desenvolvimento sustentável. No entanto, o setor ainda enfrenta desafios significativos que limitam seu desenvolvimento, especialmente no campo regulatório e financiamento.
Segundo estimativas da Associação Brasileira de Energia de Resíduos (ABREN), o biogás, o biometano e a recuperação energética de resíduos poderiam atrair investimentos de aproximadamente R$ 500 bilhões nos próximos anos. Sem incentivos regulatórios adequados, porém, o Brasil continuará perdendo o potencial energético dos resíduos da agropecuária, e nas cidades continuará dependendo unicamente dos lixões, que já deveriam ter sido encerrados em todo o país, e dos aterros sanitários.
Para contextualizar o tamanho do desafio quando se fala em gestão de resíduos no Brasil, atualmente, se aproveita menos de 3% do potencial do biogás, sendo que 92% do potencial encontra-se nos resíduos da agropecuária. Uma solução seria garantir incentivos para a geração de eletricidade a partir do biogás, precificando adequadamente as emissões de metano evitadas e a complementariedade com a energia solar por meio do gasômetro, ou seja, reservar o biogás enquanto há sol e gerar quando a rede fica ociosa, garantindo assim estabilidade e confiabilidade ao sistema elétrico, algo que tem sido imprescindível atualmente frente à elevada inserção dessas fontes renováveis no grid.
Além disso, cerca de 30% dos resíduos sólidos urbanos do país ainda são descartados inadequadamente, em muitos casos em Áreas de Preservação Permanente (APPs), gerando sérios problemas ambientais e de saúde pública. Grandes cidades, como São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Vitória, Belém, Manaus, Recife e Florianópolis, entre outras, enfrentarão cada vez mais dificuldades para gerenciar seus resíduos, tornando inevitável e urgente a implementação de usinas de recuperação energética (UREs) e biodigestão anaeróbica. Para mudar esse cenário, é essencial a imediata inclusão da recuperação energética de resíduos nos leilões de capacidade previstos para este ano, assim como a aprovação do Programa Nacional da Recuperação Energética de Resíduos (PNRE).
Com esse objetivo, a ABREN contribuiu, em 2024, com a sugestão de emendas ao Programa da Aceleração da Transição Energética (PATEN) para inclusão da recuperação energética de resíduos no programa, porém sem sucesso. A medida buscava estabelecer um balcão unificado de contratação das usinas de recuperação energética de resíduos, ou waste-to-energy (termo em inglês), de forma que o município pudesse licitar por meio de um contrato de concessão vinculado à garantia de venda da energia elétrica para a União, com o montante alocado na forma de energia de reserva (capacidade).
O objetivo da medida seria o cumprimento das metas do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PLANARES), que prevê a contratação de 994 MW de potência instalada de recuperação energética, 252 MW de potência instalada de gás de aterro (biogás) e 69 MW de potência instalada de biodigestão anaeróbia (biogás), até 2040, com uma média de 87 MW por mês. Ou seja, nossa proposta tinha como objetivo mostrar um caminho para que o Brasil possa cumprir o que prevê o próprio Planares.
Caso esses 994 MW se concretizem, estamos falando de R$ 54,67 bilhões de investimento. Vale ressaltar que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada 1 real investido em saneamento, 4 reais são economizados na saúde pública.
A proposta endossada pela ABREN é que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) seja responsável pelo cálculo da tarifa de eletricidade, a ser homologado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), enquanto o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMAMC) estabeleceria as metas do PLANARES. Com esse modelo, o governo poderia negociar quantidades e preços, garantindo previsibilidade ao setor e estabilidade econômica para novos investimentos.
Possibilidades para financiamento Além do contexto regulatório, há diferentes possibilidades quanto ao financiamento dessas tecnologias. A depender do poder calorífico do resíduo sólido urbano (RSU), qualidade dos materiais, tamanho da usina e o valor que o município paga pela destinação final (tarifa do lixo), o custo da energia varia. Se considerado o preço atualmente pago aos aterros sanitários, cerca de R$ 140,00 por tonelada de RSU, uma usina pequena demandaria, no máximo, uma tarifa de R$ 750,00/MWh, conforme cálculo da ABREN.
Mas, a partir de um reajuste na taxa do lixo, e tendo boas condições de poder calorífico e porte da usina, os valores podem cair a R$ 500,00/MWh, ou até menos, que são valores factíveis atualmente para térmicas que geram na base (inflexíveis) com 8.100 a 8.500 horas/ano de operação contínua e ininterrupta, com apenas 1 a 2 semanas por ano para manutenção preventiva. Para as usinas de biogás, os preços são menores ainda, variando de R$ 300,00 a R$ 440,00/MWh, ao passo que da biodigestão anaeróbia de RSU de R$ 600,00 a R$ 781,00/MWh.
Além disso, pelo menos 20% do despacho de potência do Operador Nacional do Sistema Elétrico (NOS) de termoelétricas fósseis supera os R$ 750,00/MWh, com usinas fósseis chegando a R$ 3.000,00/MWh. Com isso, ao se adicionar uma usina WtE, o preço seria negativo e traria redução da tarifa do consumidor, além de ser uma excelente solução de saneamento básico, redução de gases de efeito estufa e danos à saúde pública.
Olhar para o contexto da Alemanha pode colocar bastante luz ao cenário brasileiro. Tendo proibido aterros sanitários desde 1995, a Alemanha hoje possui os maiores índices de reciclagem e compostagem, e destina 31% dos seus resíduos urbanos para usinas waste-to-energy. Com tarifas de R$ 200 a R$ 1.000/MWh para o biogás, a Alemanha tem um parque gerador de 6GW de potência instalada. O preço pode parecer alto, mas como a demanda é baixa comparando com a demanda total energética, que é de 250GW de potência instalada, o impacto é irrisório. A medida se justifica muito mais pelo custo evitado inerente à redução das emissões de metano – atendimento às metas do aquecimento global, diversificação da matriz energética, produção de biofertilizantes e composto orgânico, assim como a redução dos danos à saúde pública decorrente do aterramento de resíduos.
Apesar do atraso, há oportunidades que não podem ser desperdiçadas Devido ao contexto explanado acima, o Brasil está cerca de 50 anos atrasado em comparação com o resto do mundo quando se trata da recuperação energética de resíduos. A cargo de exemplo, a primeira Usina de Recuperação Energética (URE) prevista para entrar em operação no país é a URE Barueri, com 20 MW de potência, vencedora do leilão A-5 em 2021. A usina tem previsão de funcionamento a partir de janeiro de 2027. Além disso, a cidade de São Paulo estabeleceu a obrigação para que as concessionárias Loga e Ecourbis implementem duas usinas de 1.000 toneladas/dia cada, com a primeira prevista para operação em 2028. Estes projetos representam investimentos de aproximadamente R$ 3,3 bilhões.
Outras iniciativas nacionais incluem a URE do consórcio Consimares, na região de Campinas (20 MW), a URE Caju, no Rio de Janeiro (20 MW), e a URE Mauá, do Grupo Lara, com 80 MW, no município de Mauá (SP). Todas essas usinas já possuem licença ambiental prévia e conexão ao sistema elétrico, estando aptas a participar de leilões ou contratações diretas pela União.
Brasília também apresentou avanços, principalmente por meio de dois projetos estruturados pela Secretaria de Projetos Especiais (SEPE). Um deles é uma Parceria Público-Privada (PPP) para construir uma central de triagem e três biodigestores para processar até 2.400 toneladas/dia. O outro projeto envolve a operação do aterro sanitário de Samambaia e a construção de uma URE com capacidade de até 50 MW. Os investimentos totais são estimados em R$ 3,1 bilhões. Esses projetos recentemente foram classificados como prioridade pelo Governador do Distrito Federal e devem ser contratados em breve.
Outro modelo em discussão é por meio da autoprodução, em que o próprio município ou consórcio municipal se torna proprietário da usina e utiliza a energia gerada para iluminação pública, transporte e serviços municipais. Embora esse modelo elimine a necessidade de venda da energia para terceiros, e assim receba isenções tributárias e de encargos, pagando apenas o custo da tarifa do fio (TUSD), ele não conta com garantias bancárias mediante contrato de longo prazo (PPA), o que pode apresentar certas restrições ao financiamento.
Impactos socioeconômicos e ambientais A implantação das UREs traz impactos positivos não apenas para o setor energético, mas também para a saúde pública e o meio ambiente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento resulta em uma economia de R$ 4 em despesas de saúde. Além disso, a substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis reduz significativamente as emissões de gases de efeito estufa e minimiza os impactos negativos do descarte inadequado de resíduos.
Apesar de o Brasil enfrentar um período de sobreoferta de energia, as usinas possuem um diferencial estratégico: são usinas de capacidade, essenciais para a estabilidade do sistema elétrico e a complementariedade com renováveis. Ao mesmo tempo, sua implantação está alinhada com as metas de descarbonização e transição energética globais.
Oportunidade única O Brasil tem diante de si uma oportunidade única de transformar seus resíduos em uma fonte estratégica de energia, garantindo benefícios econômicos, ambientais e sociais. Para isso, é fundamental um compromisso regulatório mais claro por parte do governo, garantindo previsibilidade para atração de investimentos.
Se queremos um futuro mais limpo e sustentável, é essencial agir agora para tornar a recuperação energética de resíduos uma realidade em todo o país.
Yuri Schmitke é Presidente Executivo da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (ABREN), Vice-Presidente LatAm do Waste to Energy Research and Technology Council (WtERT), Sócio da Girardi & Schmitke Advogados e Professor Convidado da FGV São Paulo no MBA em Administração: Recuperação Energética e Tratamento de Resíduos.
Claudio Girardi é sócio e fundador da Girardi & Schmitke Advogados, foi Procurador-Geral da ANEEL entre 1997 e 2008, e Coordenador Jurídico nas áreas de Água e Energia no Ministério de Minas e Energia – MME, além de ter exercido funções anteriores no mesmo ministério e no extinto Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE.